A Lei de Acesso à Informação é falha no que diz respeito ao registro e
armazenamento de dados, avalia o coordenador do Arquivo Público de São
Paulo, Carlos Bacellar, também professor de História da USP e
responsável por implementar a lei no Estado.
“Não adianta você querer dar acesso à informação se você não acha a
informação, se ela está desorganizada, caótica, guardada em depósitos,
em buracos. Em geral, os órgãos públicos reservam o pior lugar que eles
têm para guardar os documentos”, diz, nesta entrevista ao
Estado.
Segundo ele, o Arquivo Nacional, que deveria ser o grande ator do
registro de informações, anda ausente. “Estou temeroso. Falta uma
política mais incisiva nisso”.
Bacellar refuta a tese de que o mundo digital vá tornar mais barato e menos demorado o arquivamento dos dados.
“A informática parece ser uma panaceia para todos os problemas, mas
ela é muito inconstante. Você faz um sistema hoje, começa a implementar,
daqui a cinco anos ele já está velho. O software envelheceu, as
máquinas envelheceram. Isso exige um investimento de renovação
contínua”.
(Fernando Gallo)
Qual a avaliação do sr. sobre a Lei de Acesso à Informação no que diz respeito ao registro e armazenamento de arquivos?
Nesse quesito é falha. Praticamente não toca nesse assunto. Tem
apenas uma menção a arquivo, mas absolutamente não fala de gestão
documental. Isso é fundamental para a implementação da Lei de Acesso à
Informação. Não adianta você querer dar acesso à informação se você não
acha a informação, se ela está desorganizada, caótica, guardada em
depósitos, em buracos. Em geral, os órgãos públicos reservam o pior
lugar que têm para guardar os documentos. Nunca é um lugar nobre. A lei
transforma a informação em um assunto nobre, mas o Estado – e eu falo
genericamente, municípios, Estados e União – ainda não tem essa prática
de guardar as informações em áreas nobres.
Por quê?
É uma tradição muito antiga. Se você falar com qualquer funcionário
público antigo, ele sabe que trabalhar no arquivo era punição. Qualquer
falta, quando cometia uma besteira, brigava com alguém, era mandado para
o arquivo. Enterra no arquivo, larga no arquivo. Arquivo e protocolo
são as áreas “patinho feio”. Ninguém quer trabalhar. Em geral é o pior
lugar do prédio. O porão, a garagem suja, o sótão. E preservar os
documentos nunca foi uma preocupação.
É cultural também? O brasileiro é indisciplinado para gerir a burocracia?
É cultural, com certeza. Você tem exemplos fora do Brasil de cuidado
muito mais ostensivo com a documentação, de preservar a memória, a
identidade nacional. Nós somos um país mais novo. É complexo. Em lugar
nenhum você encontra uma política antiga ostensiva de preservação da
memória. Já teve no passado. O Conselho Institucional de Arquivos, que é
um órgão da Unesco, diz que o Brasil foi dos países pioneiros no
tratamento de documentos na virada do século XIX para o XX. Aqui em São
Paulo, o que o Washington Luis (presidente do Estado de São Paulo – 1920
a 1924 – e da República Velha – 1926 a 1930) fez pelos arquivos quando
foi prefeito e quando foi governador foi muita coisa. Ele ajudou demais.
Depois isso sumiu do horizonte das preocupações.
Qual a importância do registro e do armazenamento dos arquivos?
Esses documentos registram nossa história, o que o Estado fez ou
deixou de fazer ao longo do tempo. É o testemunho da visão da História
pela visão do Estado, que é uma visão particular. Não é a mesma visão
que você vai ter com acervos privados, que têm outro tipo de
documentação. Segundo, esses documentos preservam direitos do cidadão.
Nós (do Arquivo Público de São Paulo) somos um órgão que funciona muito
como um órgão cartorial. Diariamente recebemos dezenas de pedidos de
certidões, que assino com fé pública, registrando direitos. É o sujeito
que foi torturado no DOPS e quer um documento para pedir sua
indenização, é o sujeito cujo avô tinha uma terra não sei onde e ele
quer brigar na Justiça por ela, então pede a certidão da terra, é o
fulano que o bisavô migrou e ele quer o passaporte italiano. E agora,
com a Lei de Acesso, esses documentos atestam a ação do Estado.
Há uma crítica, que é do ministro José Jorge, do Tribunal de
Contas da União, de que as agências reguladoras, à exceção da Aneel, não
registram suas reuniões, não fazem atas, que, aliás, é um problema
generalizado em todas as esferas de governo. O que precisa ser
registrado para que o brasileiro conheça como os órgãos tomam suas
decisões? As atas? As audiências dos seus altos dirigentes? O que é mais
fundamental?
O mais simples é fazer atas. Aqui no Arquivo eu tenho essa mania.
Toda reunião que a gente faz, a gente faz ata. Quero registrar as
decisões que a gente toma. Se você tem um órgão com muitos
representantes… pega o Conselho Nacional de Educação. Eu quero saber
como essas pessoas votam. Do mesmo jeito que quero saber como meu
deputado votou.
Com relação ao Legislativo isso é muito claro, mas parece que com o Executivo ainda não.
É. Mas é uma prática salutar. Quando você tem um coletivo reunido,
saber as posições das pessoas, quem defende isso e quem defende aquilo.
Uma versão majoritária ganhou, mas é bom saber quem votou a favor e quem
foi contra e por quais razões. São homens públicos. Governam em nome da
gente. A sociedade tem que ter essa satisfação. Mas é uma cultura
complicada. A gente vai demorar muitos anos para implementar isso. Vai
depender muito dos titulares dos cargos tomarem essa decisão.
Quais são os principais desafios para que a gente tenha uma política de gestão documental efetiva no país?
Acho que o desafio é político. É a decisão política de implementar
essas mudanças todas. Há obstáculos técnicos, de dificuldades de achar
informação. Por mais boa vontade que o governante tenha, às vezes não se
acha uma informação porque os arquivos não estão organizados. Mas acho
que é uma decisão política.
Se houver vontade política os obstáculos técnicos não serão tão grandes assim?
Claro. A documentação existe. É questão de se aplicar critérios. O
que é sigiloso? Esse é um critério técnico e político. Não é só técnico.
O governador vai analisar e dizer “isso eu quero que seja
ultrassecreto” e justificar. Tem vários critérios que são políticos
mesmo.
Do ponto de vista técnico o que é mais difícil de fazer?
Digitalizar os arquivos que estão em papel? Iniciar um sistema de
produção digital de documentos?
Tudo isso é complicado. Você imagina o volume de documentos que um
Estado como São Paulo produz. É do tamanho da França, produz documentos
aos milhões por ano. Você nunca consegue imaginar que o que existe em
papel hoje vai ser digitalizado. Isso é uma ficção. Impossível. O que
temos que fazer é implementar uma política de gestão desses documentos
que possibilite que se separe o que tem valor daquilo que não tem para
que aquilo possa ser consultado pela população.
Iniciar hoje um sistema digital de produção de documentos,
com o avanço da tecnologia da informação, é menos custoso e menos
demorado?
É demorado, sim. Informática é uma coisa difícil. Parece ser uma
panaceia para todos os problemas, mas ela é muito inconstante. Você faz
um sistema hoje, começa a implementar, daqui a cinco anos ele já está
velho. O software envelheceu, as máquinas envelheceram. Isso exige um
investimento de renovação contínua. Imagina que daqui a 100 anos você
não tenha mais papel sendo produzido no Estado, que tudo seja digital. O
que vai deixar de investir em tamanho de prédios para guardar essa
massa de documentos, vai investir em volume de equipamentos de
informática. Duvido que fique mais barato. Apenas muda o rumo do
investimento. Imagina o seguinte: você tem mil terabytes de informação
armazenada. O equipamento fica obsoleto, você troca. Se o software fica
obsoleto, tem que migrar. Isso custa muito caro. A informática não
barateia. Em termos de preservação, ela encarece.
O modelo ideal é aquele em que você produz, armazena e libera a informação eletronicamente?
O ideal é que você consiga ter, no mínimo, o gerenciamento eletrônico
da informação. Isso dá não apenas uma agilidade no acesso à informação,
mas de gestão dela. Se eu sou o governador e preciso de uma informação,
aperto o botão e a recebo em segundos. “Alguém já fez um projeto sobre
tal assunto?”. E aí descobre que em 2009 teve uma iniciativa na
secretaria tal. A coisa que mais acontece nos governos hoje em dia é
você descobrir iniciativas paralelas. O seu órgão fazendo uma coisa e o
órgão de lá fazendo a mesma coisa porque não tem comunicação. Um sistema
desse permite que você rastreie. Você levanta com palavras-chave e você
acha as coisas. O digital veio e não dá para fugir. Tem várias
vantagens que o físico, o manual não tem.
Como vai funcionar o SPDoc em São Paulo?
O cidadão vai saber, pelo número do protocolo dele, onde está o
documento. É útil para ele e o Estado também vai usufruir disso. Vai
conseguir rastrear, por exemplo, os gargalos. De repente você descobre
que naquela etapa X o processo está enroscando. Tem que ficar cinco dias
e está ficando 20. O que está acontecendo? Tem muito processo? Falta
servidor pra atender? O próprio sistema vai permitir rastrear os
gargalos e tentar eliminá-los.
Que impressão o sr. tem dos esforços que o governo federal está ou não fazendo com relação à gestão documental?
Fico um pouco temeroso. Não vejo, nas iniciativas apresentadas, grandes notícias, não.
O Executivo federal, das esferas, é o que está mais adiantado
em relação à Lei de Acesso. Mas na parte de gestão documental o governo
não parece ter feito esse mesmo esforço.
Não parece. Eles estão adiantados porque eles trabalharam na
elaboração da lei, que foi pensada para ser uma lei para o governo
federal. Não era uma lei nacional. No Senado ela foi mudada. A União já
estava trabalhando nela há muito tempo. Por que a lei saiu e no dia
seguinte tinha o e-SIC (serviço eletrônico do Serviço de Informações ao
Cidadão do governo federal)? Porque eles trabalhavam nisso havia meses. E
nós começamos a trabalhar no dia seguinte em que a lei saiu. Não podia
trabalhar em cima de uma lei que não estava em vigor. Não estamos
atrasados.
E no governo federal onde está o gargalo da gestão de documentos? No Arquivo Nacional?
É. Nos órgãos que seriam responsáveis por isso. O Arquivo Nacional e o
próprio Conarq, que estabelece as políticas (Conselho Nacional de
Arquivos). Falta uma política mais incisiva nisso.
No Brasil ou fora, quem é modelo em gestão documental?
Canadá, Austrália, a Espanha também tem uma tradição arquivística muito boa. Os países anglo-saxônicos são os mais desprendidos.
Como assim?
arquivo visa preservar só aquilo que tem valor para a posteridade. É
sempre subjetivo. Tem uma máxima em arquivologia que diz que quem quer
guardar tudo, não guarda nada. A diferença dos países latinos para os
anglo-saxônicos é esse desprendimento. O Canadá trabalha com preservação
de 5% dos papeis. A Austrália mira 1%.
Aqui em São Paulo a gente guarda quanto?
Não existe esse cálculo.
E o exemplo sueco?
A Suécia é um governo muito aberto. Inclusive os e-mails são de livre
acesso à população. Nada que um governante faz é escondido da
população.
Se o primeiro-ministro manda um e-mail…
A população pode acompanhar em tempo real. É fantástico. Isso é um
sonho. A lei deles é de 1744. Infelizmente, em muitos lugares ainda há
uma herança do Absolutismo. Eu sou o governo, eu. Eu me reúno com os
meus assistentes e resolvo o que vai ser melhor.
Fonte:
http://blogs.estadao.com.br/publicos/lei-de-acesso-e-falha-no-registro-de-dados-diz-coordenador-do-arquivo-publico-de-sp/