Parte 2: Registro
Nacional de Identidade eletrônico e sua estreita relação com o e-Gov
Julianne
Teixeira e Silva[1]
De
acordo com o que foi exposto na primeira parte e conforme previsto em seu projeto inicial,
o RIC, pode tornar-se em um novo
documento de identidade dos brasileiros.
Com
a finalidade de esclarecer o propósito desse texto, e na falta de uma
nomenclatura oficial, vou adotar a sigla e-RIC
para designar Registro de Identidade Civil eletrônico.
O
e-RIC terá o propósito de ser uma versão moderna do nosso RG que trará, além
dos dados pessoais, recursos tecnológicos para identificar o cidadão por meio
de dados biométricos e fotografia impressa num smart card confeccionado com
padrões internacionais de segurança. O
documento terá, ainda, chips que permitirão a identificação por meios eletrônicos
e tecnologicamente seguros, inclusive com um certificado digital para cada
brasileiro, seguindo o que regulamenta a Infraestrutura de Chaves Públicas
Brasileira ICP-Brasil[2].
Algo similar a algumas identificações profissionais a exemplo das expedidas aos
advogados[3]
e contadores. Ambas as profissões já estão
trabalhando com documentos e processos eletrônicos.
A
identificação civil no Brasil é compulsória o que, de certo modo, promove a
obrigatoriedade de sua utilização não apenas para identificar-se civilmente,
mas também para acessar determinados serviços e atividades prestadas pelo
Estado, bem como para ter o direito a algumas formas de exercício de cidadania,
como o voto, por exemplo. Temos que provar quem somos, que cumprimos a contento
com nossas obrigações junto à justiça eleitoral para que nos seja outorgado o
direito (compulsório) ao voto.
A obrigatoriedade da identificação
civil torna o e-Ric, no âmbito do governo eletrônico, em um elemento crucial
para viabilizar as interações entre governo e cidadão na esfera da democracia
digital[4],
esta relação é conhecida como G2C que vem do acrônimo em inglês Government to
Citizen. Contudo o e-RIC abre a perspectiva de que essa interatividade ocorra
em uma via de mão dupla, isto é, a ampliação das formas de contato entre
cidadão e serviços públicos como previsto no conceito em via inversa C2G que
vem do acrônimo em inglês Citizen to Government. Isto é, a interação Cidadão
para Governo. Ressaltando que a interação C2G é considerada como uma prática de alto nível no contexto do
governo eletrônico.
De acordo com BARROS, CEPIK e CANABARRO (2010)[5] um dos elementos centrais na concepção de
serviços eletrônicos no âmbito governamental seriam os mecanismos de
identificação dos usuários que os solicitam.
“Para a entrega correta dos serviços, é
necessário que o Estado possa identificar com segurança o cidadão com quem está
interagindo. A identificação do cidadão, neste contexto, deve ser: unívoca – ou
seja, que permite assegurar que não existam dúvidas de que é o cidadão; segura,
ou seja, que fornece mecanismos de segurança adequados; usável, ou seja, que
seja conhecida e desembaraçada para uso do cidadão”.
Importante frisar aqui, que em alguns
países como, por exemplo, Coréia do Sul, Austrália e Estados Unidos, a
Identificação ad hoc não é
compulsória, ou seja, o cidadão pode ser identificado por meio de outros
documentos como carteira de motorista, cartões de seguros sociais, passaportes,
etc sem precisarem ter a obrigatoriedade de um documento de identificação para
esse fim específico. Mesmo assim, acessam serviços públicos via internet. Vale
observar que estes países ocupam as primeiras posições no ranking de e-governo da ONU.
O que não justificaria relacionar a obrigatoriedade de um documento
eletrônico de identificação, com o acesso aos serviços públicos de forma
eletrônica.
Entretanto, o contrário também acontece, podem
ser citados países que estabelecem a obrigatoriedade do documento eletrônico de
identificação e estão bem colocados no ranking de e-Gov da ONU. Como é o caso
da Espanha, Holanda e de dois países Sul Americanos, que são o Chile e o
Uruguai (No Uruguai está prevista a emissão dos documentos eletrônicos para o
segundo semestre de 2015). Uma vez
mencionado o ranking de e-Gov, destaca-se que o Brasil ocupa, atualmente, o 57º
lugar, conforme pesquisa no banco de dados UneGovDD das Nações Unidas - a avaliação
compara o desenvolvimento do governo eletrônico entre os Estados membros.
Como
já dito, no caso do Brasil, o documento de identificação civil é compulsório.
Desta feita a implementação do e-Ric pode viabilizar e facilitar o acesso aos
serviços prestados pelos governos em suas três esferas o que dentre outras
finalidades podem se tornar vetores para mitigar burocracias que se interpõem
entre o cidadão e Estado.
É
no entorno das práticas e estratégias do governo eletrônico que se estabelece a
dinâmica entre os recursos necessários para a viabilização do acesso aos
serviços e às informações governamentais mediados pela tecnologia.
O
57º lugar que o Brasil ocupa no ranking da ONU de 2014, é reflexo de que o
governo eletrônico no Brasil enfrenta problemas e tem dificuldades em avançar.
Principalmente ao que se refere à gestão da informação. À medida que o tempo
passa, a experiência do Brasil com o e-Gov
avança, porém, segundo
Jardim (2010)[6], encontra-se
longe de romper os mecanismos de opacidade do Estado brasileiro. “Não se observam melhorias nos padrões de
gestão da informação governamental, como revela a situação caótica dos arquivos
governamentais. O Estado brasileiro acumula um saldo histórico negativo de
exclusão informacional ainda não superada pelo e-Gov”.
Ações
fragmentadas provocam desnivelamentos no governo eletrônico brasileiro. Ações coordenadas, melhor niveladas e um
marco jurídico próprio podem facultar em boas práticas e estratégias para o
governo eletrônico no Brasil. Jardim
(2010), alerta que o peso da tecnologia da informação no e-Gov tende a ser
objeto de forte ênfase em detrimento da informação governamental propriamente
dita. Dentre os inúmeros
recursos, práticas e estratégias do e-Gov, destacam-se algumas que podem
modificar esse cenário, se levadas a cabo com sinergia entre si, as quais
estabelecem relações diretas com a gestão de documentos no entorno eletrônico.
A saber:
-
Governo eletrônico como prática e estratégia de governança que exigem reforma
administrativa;
-
Tecnologias da informação e comunicação como estrutura e mediação;
-
Normas Jurídicas como aporte para o governo eletrônico;
-
Normas técnicas e padrões de interoperabilidade para o governo eletrônico;
-
Administração eletrônica como programa do e-governo - onde a gestão
arquivística de documentos eletrônicos objetivamente se estabelece.
No
ambiente governamental as TICs estão estabelecendo uma nova forma de governança
o que tem demandando dos governos a coesão de sua atuação com o contexto tecnológico.
As tecnologias da informação e comunicação estão causando transformações na
sociedade como nunca se viu em seus estágios de desenvolvimento, principalmente
porque imprimem uma velocidade de mudanças sem precedentes. A sociedade vem
sendo impactada nas mais variadas dimensões, sobretudo em suas relações
pessoais e sociais. São incontestáveis as influências e pressões que a
comunidade internacional e as novas tecnologias vêm exercendo sobre o Estado.
No seio dessas pressões está a compressão por reformas administrativas
objetivando alinhamentos para o e-governo.
O regulamento jurídico do governo eletrônico brasileiro é composto por
decretos presidenciais e portarias. Silva (2013)[7]
elucida que no Brasil são criados apenas programas e órgãos departamentais, sem
efeito permissionário ou coercitivo legal. Uma característica do governo
eletrônico brasileiro, referente ao seu marco jurídico é a de que se constata
que o e-Gov brasileiro se configura mais como uma Política de Governo do que uma Política
de Estado. Ainda citando Silva (2013), e a pesquisa realizada por ele
comparando os governos eletrônicos dos Estados Unidos e Brasil, tornou possível
distinguir que “o e-Gov no Brasil é mais
voltado para a Política de Governo, isto é, ações objetivas no exercício do
poder executivo, do que para a Política de Estado, ou seja, uma política
institucional com apoio normativo (imposta por lei). Logo, a ausência de uma
legislação própria traz insegurança jurídica para a sociedade civil (empresas
privadas, cidadãos, organizações não governamentais) e outros governos”.
O
Marco civil de internet Lei 12.965/2014 estabelece alguns pontos que envolvem
serviços públicos, mas faz-se necessário esclarecer que o Marco Civil da
Internet não é uma legislação específica para regulamentar o e-Gov. No capítulo
IV artigos 24 ao 28 da referida lei, estão enumerados pontos sobre a atuação do
poder público na internet. Entre estes pontos são observáveis alguns em que o
e-RIC tornaria muitos serviços públicos mais simples, com menos filas e menos
burocracia.
Como
por exemplo no Art. 24, inciso X, em que
a União, Estados e Municípios atuem via internet na “prestação de serviços públicos de
atendimento ao cidadão de forma integrada, eficiente, simplificada e por
múltiplos canais de acesso, inclusive remotos”.
O
Marco civil da Internet ainda não possui decreto que o regulamente e está
aberto para debate público até dia 30 de abril de 2015, e pode ser acessado por
uma plataforma disponibilizada pelo Ministério da Justiça.
Existe
também, já promulgado, outro indício para a utilização do possível e-RIC. Trata-se da lei do Programa Minha Casa Minha
Vida - Lei 11.977 de 2009. Os Artigos 37 a 41 tratam da tramitação de documentos eletrônicos,
inclusive de que sejam certificados eletronicamente.
“Art. 38. Os documentos eletrônicos
apresentados aos serviços de registros públicos ou por eles expedidos deverão
atender aos requisitos da Infraestrutura de Chaves Públicas Brasileira - ICP e
à arquitetura e-PING (Padrões de Interoperabilidade de Governo Eletrônico),
conforme regulamento.
Parágrafo único. Os serviços de
registros públicos disponibilizarão serviços de recepção de títulos e de
fornecimento de informações e certidões em meio eletrônico.
Art. 39. Os
atos registrais praticados a partir da vigência da Lei
no 6.015, de 31
de dezembro de 1973, serão inseridos no
sistema de registro eletrônico, no prazo de até 5 (cinco) anos a contar da
publicação desta Lei. (Vide Decreto nº 8.270, de 2014)
Parágrafo único. Os atos praticados
e os documentos arquivados anteriormente à vigência da Lei
nº 6.015, de 31 de dezembro de 1973,
deverão ser inseridos no sistema eletrônico.
Art. 40. Serão
definidos em regulamento os requisitos quanto a cópias de segurança de
documentos e de livros escriturados de forma eletrônica”. (Lei 11.977, de 7 de
julho de 2009).
No seio da
reflexão sobre o e-RIC se insere o âmbito
jurídico da proteção dos dados pessoais.
Este é um ponto imprescindível que não está devidamente regulamentado no
Brasil. Ao contrário de muitos países (podendo citar como exemplos os Estados
Unidos e Espanha) o Estado brasileiro ainda não possui uma legislação que
garanta a proteção dos dados pessoais, específica para esse fim. Nesse sentido a OECD (2003, p.48)[8]
pondera que o sucesso das iniciativas do e-Gov demandam um quadro jurídico
adequado para o seu funcionamento[9]
e de que é preciso assegurar a
privacidade e segurança antes de implementar serviços on-line.
Dessa forma, fica evidente que o Brasil precisa rever suas políticas
referentes ao governo eletrônico, no sentido de estabelecer passos mais seguros
no caminho dos avanços sociais e tecnológicos e no ideal de alicerçar o
e-Gov como uma Política de Estado. Dessa
feita estaria se alinhando às modernas práticas e recomendações internacionais,
do contrário é bem provável que os avanços brasileiros até agora conquistados
desalentem-se no emperramento dos limites jurídicos e burocráticos
inviabilizando a implementação do e-RIC ou simplesmente subutilizando-o.
Na
terceira parte trataremos das normas técnicas e padrões de interoperabilidade
para o e-governo e da administração eletrônica (e-Adm) como um programa
necessário para o avanço do e-Gov. É no contexto da e-Adm que a gestão
arquivística de documentos eletrônicos objetivamente se estabelece, a qual
exerce papel vital nos processos que viabilizam o acesso à informação e a
devida interatividade entre cidadãos e governo o C2G.
[1] Professora do curso de graduação
em Arquivologia da UFPB, Mestre em Ciência da Informação pela UFMG,
Doutoranda em Ciência da Informação – PPGCI/UFPB.
[2] Este é um dos pontos
de fragilidade deste projeto, não apenas sobre A ICP-Brasil que desde 2001 está
regulada por uma medida provisória a MP 22002/2001. Mas pela falta de ordenamento que dê
sustentação jurídica ao governo eletrônico no Brasil
[3] Mesmo utilizando
recursos modernos como um smart card e certificação digital, a burocracia para
a emissão desse tipo de documento é bastante grande. Veja o exemplo
http://www.oabrs.org.br/processoeletronico/noticia-94-veja-como-adquirir-seu-certificado-digital-oab
[4] Para saber mais sobre
democracia digital ver ROVER, Aires José. A democracia digital possível.
Sequência: estudos Jurídicos e políticos. V.27, n.52, 2006. Disponível em <
http://dialnet.unirioja.es/servlet/articulo?codigo=4818209>
[5] BARROS, A.;
CANABARRO, D. R.; CEPIK, M. A. C. Para além da e-Ping: o desenvolvimento de uma
Plataforma de Interoperabilidade para e-Serviços no Brasil. In: NAZARÉ, L. B.;
MESQUITA, C. (Eds). Panorama da Interoperabilidade. 1 ed. Brasília: MP/SLTI,
2010, v. 1, p. 137-157.
[6] JARDIM, José Maria. Caminhos do Governo Eletrônico no
Brasil. Brasil Econômico 14 de julho, 2010.
[7] SILVA, Rodrigo
Cardoso. Aspectos normativos de governo eletrônico no Brasil. Revista
Democracia Digital e Governo Eletrônico, n.8, p. 93-124, 2013.
[8] OECD. The e-government imperative. Paris: Organisation for
Economic Co-operation and Development.
2003. (Sigla em português, OCDE - Organização para a
Cooperação e Desenvolvimento econômico).
[9] Um exemplo da
necessidade de ajustes jurídicos para o e-Gov e o e-RIC está na Medida
Provisória 2.2002 de agosto de 2001. Pouco se evoluiu em termos das normas
jurídicas, principalmente legislação que ofereça suporte para que todo o
cidadão tenha direito a assinatura digital e que lhe garanta proteção de seus
dados pessoais.
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