Por Marta Avancini
10/06/2012
10/06/2012
Num
cenário em que o papel parece perder, progressivamente, prestígio para
os meios digitais, surge uma questão fundamental à luz da necessidade de
manutenção da memória do conhecimento produzido pela sociedade: a
preservação dos arquivos. Cada vez mais, editoras científicas, arquivos,
bibliotecas e centros de informação estão optando por utilizar a
internet, bancos de dados e mídias como CDs, DVDs e blue rays para
armazenar conteúdos novos e acervos antigos. Por um lado, não existem
muitas dúvidas sobre as vantagens das publicações digitais mas, por
outro, o desafio que se coloca é o da preservação do conhecimento
produzido e difundido em meios digitais.
“A
migração das publicações em papel para os meios digitais é um fato
comprovado”, afirma Miguél Ángel Arellano, pesquisador do Instituto
Brasileiro de Informação em Ciência e Tecnologia (Ibict) e doutorando em
ciências da informação na Universidade de Brasília (UnB). “No Ibict, é
crescente o número de periódicos que procuram o registro de ISSN para a
versão eletrônica de uma publicação já existente em formato impresso”.
São
várias as vantagens das publicações eletrônicas, especialmente a
possibilidade de administração online dos processos de submissão,
avaliação e publicação imediata de números anteriores e a produção de
novas edições. No Sistema Eletrônico de Editoração de Revistas, por
exemplo, um aplicativo online desenvolvido pelo Ibict para pesquisadores
criarem e publicarem revistas científicas eletrônicas, já há 1,3 mil
revistas científicas eletrônicas cadastradas.
Um
segundo aspecto positivo que costuma ser associado às publicações
digitais é a ampliação e a diversificação das possibilidades de
produção, difusão e acesso a informações. “A publicação em meio digital,
se de livre acesso, sem dúvida é mais democrática, mais fácil de
intercambiar e disseminar o conhecimento”, analisa a coordenadora da
Biblioteca Nacional Digital, Ângela Bettencourt. A BN Digital, como é
conhecida, disponibiliza na internet 25 mil itens (ou 5 milhões de
páginas). Com a iniciativa, o público em geral passou a ter acesso, via
internet, a parte do acervo de uma das mais importantes bibliotecas do
país.
Outro
exemplo de iniciativa voltada para a disseminação do conhecimento é o
portal Domínio Público, ligado ao Ministério da Educação, cujo número de
acessos saltou de 113 mil em 2004 para 8,04 milhões em 2011. Seu acervo
é composto por 171 mil obras em texto, vídeo, som e imagem que estão em
domínio público – cujos autores já morreram há mais de setenta anos ou
cujos prazos de proteção dos direitos autorais se excederam – ou entre
aquelas cuja disseminação na internet foi autorizada pelos autores.
O problema do suporte
As
vantagens das publicações digitais podem, entretanto, cair por terra se
não forem tomados cuidados a fim de assegurar sua preservação
indefinidamente ao longo do tempo, de modo que as futuras gerações
tenham acesso à chamada memória digital. Na opinião de Humberto
Innarelli, pesquisador e analista de desenvolvimento de sistemas do
Arquivo Edgard Leuenroth da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp),
esse é um dos principais riscos que corremos com a disseminação das
novas tecnologias de informação e comunicação.
Os
novos equipamentos e o processo de automação da informação gerada por
eles fazem com que documentos digitais sejam perdidos com a mesma
facilidade com que são gerados. “Essa perda pode deixar uma lacuna
histórica e cultural”, alerta Innarelli no artigo “Preservação digital: a influência da gestão dos documentos na preservação da informação e da cultura”, publicado na Revista Digital de Biblioteconomia e Ciência da Informação.
Vários
fatores podem acarretar na perda da documentação digital, contrariando a
crença de que ela estaria livre dos mesmos problemas a que a
documentação convencional está sujeita – acondicionamento, degradação do
suporte, obsolescência dos equipamentos, falta de confiabilidade e
espaço de armazenamento.
A
utilização de um CD de baixa qualidade ou mal armazenado pode levar à
perda da informação nele contida. Por isso, dependendo das
circunstâncias, os métodos convencionais de conservação podem até ser
mais seguros e vantajosos. “É mais provável que se consiga recuperar um
documento analógico que não foi conservado em condições ideais de
temperatura e umidade do que um documento eletrônico. Geralmente, quando
se percebe o dano em arquivos digitais já é tarde demais”, diz
Innarelli. Em contrapartida, a digitalização de livros e outros tipos de
documentos está garantindo uma sobrevida a eles, além de favorecer sua
difusão.
Mas
é preciso ter em mente que a preservação em meio digital não é
necessariamente mais confiável do que as técnicas tradicionais de
preservação; ao contrário, envolve tantas fragilidades quanto os meios
convencionais de registro, como o papel. Por isso, Innarelli enfatiza a
importância da gestão na preservação – a seleção, a organização dos
documentos digitais, assim como a manutenção periódica dos arquivos e a
formação de pessoal técnico especializado para manipular esse material.
O formato em questão
A
própria evolução tecnológica pode impor dificuldades à preservação da
documentação digital, já que os formatos usados para gravar os
documentos são rapidamente substituídos por novos. Daí a ênfase na
utilização de padrões e protocolos abertos, de modo que os documentos
possam ser acessados, mesmo que os equipamentos e programas utilizados
para sua criação deixem de existir, tal como preconiza a “Carta para a Preservação do Patrimônio Arquivístico Digital”,
lançada em 2005 pelo Conselho Nacional de Arquivos e pela Câmara
Técnica de Documentos Eletrônicos, endossada pela Organização das Nações
Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco).
A
adoção de formatos abertos é um fator que pode favorecer o acesso e a
preservação dos arquivos no longo prazo, defende Miguel Arellano. No
artigo “Preservação de arquivos digitais”, o pesquisador do Ibict aponta
que essa é uma das conclusões de várias iniciativas, em diversas partes
do mundo, voltadas para o estabelecimento de metodologias e estratégias
de preservação. “Usar padrões abertos permite seu estudo e sua
conversão para novos padrões”, afirma o autor.
Assim,
embora as cópias de segurança (os backups) sejam consideradas uma forma
segura de preservar as informações digitais, na realidade elas não são
suficientes para isso. Tal função pode ser cumprida mais adequadamente,
enfatiza Arellano, pela padronização do registro dos documentos e do
material depositado nos repositórios digitais. Um exemplo de iniciativa
nessa direção é a ferramenta Lockss – sigla de Lots of Copies Keeps
Stuff Save –, desenvolvida na Universidade de Stanford, que consiste num
sistema de código aberto que cria uma rede de replicação de dados que
podem ser acessados por seus participantes. “Estamos trabalhando com um
projeto de uma rede nacional de preservação digital utilizando o Lockss
que deverá estar em pleno funcionamento até o final de 2014”, afirma o
pesquisador do Ibict.
Novamente,
a questão que se coloca não é simplesmente técnica, da escolha de um
padrão ou de outro; mas envolve problemáticas de ordem social e
institucional, já que a preservação digital depende de questões
políticas, dos modelos de negócio e de fontes de financiamento – o que
varia de país para país, de uma instituição para outra e dos tipos de
acervo em questão.
No
caso dos periódicos, por exemplo, o acesso à informação contida nessas
publicações depende essencialmente do modelo de negócios adotado pelos
editores. Segundo Arellano, a maioria das publicações online oferece
algum tipo de acesso aberto ao conteúdo, seja para o resumo ou para as
edições anteriores. “O modelo que está sendo adotado no Brasil é o do
acesso aberto, onde nem o autor nem o leitor pagam pela publicação de
resultados de pesquisa que já foram financiados pelo governo”.
A centralidade da gestão
As
problemáticas relacionadas à preservação dos acervos digitais estão
diretamente relacionadas às interferências humanas e às políticas de
preservação digital. Em outras palavras, não se limitam à escolha das
mídias a serem usadas, às técnicas de backup, de migração e de
autenticação da documentação. É um assunto que envolve a gestão da
documentação criada digitalmente, bem como os livros, fotografias,
periódicos, vídeos etc. a serem digitalizados.
“É
preciso selecionar, organizar os documentos. Avaliar quais devem ser
preservados. Também é preciso escolher as mídias e os formatos que serão
utilizados para a preservação. E é preciso fazer a manutenção dos
arquivos em meio eletrônico”, explica Innarelli. Por isso, a preservação
não se resume a fazer backups dos documentos; mas envolve outras
dimensões, como a visão e as intenções da instituição responsável.
Paralelamente,
é desejável que existam normas para armazenar e compartilhar esses
materiais de maneira adequada. Nesse sentido, aponta Arellano, alguns
especialistas defendem que as bibliotecas digitais sejam as responsáveis
pela manutenção das coleções de uso permanente; outros consideram que
um bom caminho pode ser a criação de centros de informação localizados
em instituições confiáveis.
Porém,
a preservação no longo prazo envolve um conjunto de estratégias capazes
de proteger os acervos de ameaças: as bibliotecas digitais, por
exemplo, são mais dinâmicas do que as bibliotecas convencionais, mas seu
funcionamento adequado envolve um esforço de gerenciamento que envolve a
constituição de arquiteturas, de formatos padrão e de metadados
(informações sobre os arquivos). Todos esses procedimentos, com objetivo
de garantir a segurança dos arquivos, costumam ser muito caros, de
acordo com a coordenadora da BN Digital. “A preservação adequada do
documento tradicional é muito mais barata, exige muito menos aparatos do
que a armazenagem adequada do digital. Para se ter uma ideia, um datastorage (computadores) com capacidade para armazenar 200 terabites custa mais de R$ 1,5 milhão”, afirma Ângela Bettencourt.
Em
meio aos desafios e às complexidades, em várias partes do mundo estão
sendo desenvolvidas iniciativas e estratégias para evitar a perda do
material produzido e/ou armazenado em meio digital. Um exemplo é a
cooperativa Meta Archive, que utiliza a ferramenta Lockss e reúne 50
instituições de quatro países, inclusive o Brasil, com a participação da
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio).
No
entanto, como a velocidade de produção de arquivos digitais é mais
intensa do que o desenvolvimento de projetos de preservação e como os
desafios no campo do financiamento e da gestão são grandes, a prática
mais comum nas instituições tem sido adotar medidas para postergar a
vida útil dos arquivos digitais. “Apenas grandes instituições têm
capacidade para manter um projeto de preservação digital de longo
prazo”, diz Arellano.
No
Canadá, na Austrália e na Europa, também existem ações como a Meta
Archive, voltadas para a preservação dos acervos digitais. “O Brasil
está bem posicionado no cenário internacional. O país acompanha de perto
das iniciativas de outros países e, aos poucos, começa a se difundir
uma conscientização sobre a importância da preservação dos arquivos
digitais”, analisa Innarelli, da Unicamp.
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