Por Paulo Cezar Vieira Guanaes e Maria Cristina Soares Guimarães 10/06/2012 |
|
O
movimento do acesso livre à informação científica surgiu de uma reação
contra os aumentos crescentes da assinatura de periódicos científicos
na década de 1990, praticados por editoras comerciais, fato que
provocou a chamada crise dos periódicos (leia reportagem
nesta edição). A esse respeito, Briquet de Lemos informava em 2005 que
uma análise de 123 bibliotecas filiadas à Association of Research
Libraries, dos Estados Unidos, mostrou que os gastos com aquisição de
periódicos, entre 1986 e 2004, subiram 273%. A crise forçou a busca por
alternativas ao tradicional processo de divulgação de resultados de
pesquisas e engendrou a entrada da internet no sistema de comunicação
científica. Um dos marcos dessa mudança foi o lançamento do repositório
de pré-prints criado por Paul Ginsparg, o arXiv,
em 1991, para abrigar trabalhos de matemática e física enviados por
pesquisadores. Apesar de, no início, ter gerado desconfiança em
pesquisadores no tocante ao sistema de avaliação dos textos submetidos,
é, de fato, o primeiro modelo de repositório, o que marca uma vertente
do movimento de acesso livre capitaneado pela comunidade científica.
Outro
marco da união entre comunicação científica e internet foi a Convenção
de Santa Fé, realizada em 1999 nos EUA, na qual se formulou e se
pactuou a adoção da iniciativa de arquivos abertos (Open Archives
Initiative), envolvendo o uso de software aberto para o desenvolvimento
de aplicações para interoperabilidade entre sistemas e acesso livre
para a disseminação ampla e irrestrita da informação científica.
Sucederam-se várias reuniões sobre o tema em todo o mundo,
destacando-se as de Budapeste, Bethesda, Berlim e Salvador, no Brasil,
as quais contribuíram para a compreensão, definição, alcance e
implementação do acesso livre em nível mundial.
O movimento defende a disponibilização da literatura científica na
internet, permitindo a qualquer usuário ler, baixar arquivo, copiar,
distribuir, imprimir, buscar ou fazer um link para os textos
científicos completos, capturá-los para indexação, utilizá-los como
dados para software, ou utilizá-los para qualquer outro propósito
legal, sem barreiras financeiras, legais ou técnicas, a não ser as do
próprio acesso à internet. A única restrição à reprodução e distribuição
e a função do copyright, neste contexto, deve ser o controle
do autor sobre a integridade de sua obra e o direito de ser
adequadamente reconhecido e citado.
Essa literatura é digital, online,
gratuita e livre de limitações de direitos autorais e licença de uso.
Constitui-se de textos científicos e acadêmicos que divulgam resultados
de pesquisas, avaliados por pares, e que são entregues por autores a
editores e pelos quais esses autores não recebem qualquer compensação
financeira. Inclui também textos científicos sem avaliação por pares
que os pesquisadores queiram publicar online para receber comentários ou divulgar resultados de pesquisas para seus colegas.
Para
sua disseminação, o movimento do acesso livre à informação científica
criou duas estratégias: a Via Verde – criação de repositórios
institucionais de acesso livre para a organização e divulgação da
produção científica de instituições de pesquisa – e a Via Dourada –
produção e distribuição de revistas científicas eletrônicas de acesso
livre na internet, sem restrições de acesso ou uso.
Uma pesquisa divulgada pela Nature
em 2010 divide a história do acesso aberto em três fases. Primeiro,
vieram os anos pioneiros que compreendem o período 1993-1999, durante
os quais a maioria dos periódicos em acesso livre se constituía em
esforços "caseiros", criados por indivíduos e hospedados nos servidores
de uma universidade, a exemplo do arXiv. Em seguida, vieram os anos
de inovação, que viram o nascimento de editoras online, como a PLoS (Public Library of Science), de bibliotecas eletrônicas, como a SciELO (leia entrevista
com um dos fundadores da SciELO), no Brasil, e de toda uma
infraestrutura de software que tornava muito mais fácil lançar uma
revista digital, seja em termos econômicos ou tecnológicos. Todos esses
projetos têm como principal característica proporcionar o acesso livre
à informação científica.
O
movimento vem tendo como primeiro alvo tornar livre o acesso a 2,5
milhões de artigos científicos avaliados por pares e cedidos por seus
autores, sem qualquer pagamento a editoras comerciais. Essas editoras
publicam esses milhões de artigos anualmente em 25 mil periódicos
científicos. Ocorre que essas empresas editoriais sempre estiveram de
olho no movimento de acesso livre à informação científica, mas não em
seus objetivos democráticos. Daí surgiram dezenas de modelos de gestão
de periódicos científicos eletrônicos, dentre os quais se destaca o
modelo “autor-paga”, no qual o autor ou a instituição que o financia
arca com os custos de produção do periódico mediante o pagamento de uma
taxa para publicação. Esse modelo substituía o secular “assinante
paga”, no qual os custos eram suportados pelo usuário final,
bibliotecas ou leitores.
Os lucros sobre o conhecimento
Em janeiro deste ano, Timothy Growers, um matemático que em 1998
ganhou a Medalha Fields, o equivalente nesse campo ao prêmio Nobel, ao
publicar um post em seu blog
protestando contra as práticas comerciais da editora Elsevier, reabriu a
polêmica da cobrança exorbitante de assinaturas de publicações ao
descrever os motivos pelos quais vinha fazendo um longo boicote às
revistas científicas publicadas pela Elsevier. Esta editora holandesa
possui mais de 2 mil títulos de periódicos científicos em seu extenso
catálogo de publicações, que inclui revistas de alto impacto como Cell e The Lancet.
Em
2010, a Elsevier registrou um lucro de 1,16 bilhão de dólares, numa
receita de 3,23 bilhões de dólares, o que equivale a 36% de margem de
lucro, um exagero para o setor de publicações acadêmicas, agravado por
ter sido num ano de crise econômica mundial. Os conglomerados
editoriais Elsevier, Springer e Blackwell detêm 42% do mercado de
publicações científicas.
O post crítico motivou Tyler Neylon, colega de Growers, a lançar um boicote online
no qual os subscritores se comprometem a não submeter seus trabalhos ou
trabalhar como pareceristas para revistas da Elsevier. Em 2 de junho
de 2012, cerca de 12 mil pesquisadores em todo o mundo já haviam
aderido ao boicote, confirmando o estado latente de beligerância entre
acadêmicos e seus editores, conflito que vem se acentuando com o êxito
das publicações eletrônicas de acesso livre. As queixas do professor
Growers contra a Elsevier acabaram, assim, desencadeando uma nova
crise, semelhante àquela que gerou a reviravolta no processo de
comunicação científica com o advento do movimento pelo acesso livre à
informação científica por meio de periódicos científicos eletrônicos e
repositórios digitais. Growers, como a maioria dos pesquisadores, é
favorável à livre circulação do conhecimento, por isso não concorda com
(1) preços exorbitantes de assinaturas de periódicos científicos, (2) a
prática de forçar a venda de revistas científicas em “pacotes” (a
biblioteca deseja um título específico, mas é obrigada a comprá-lo como
parte de um conjunto que inclui vários outros títulos que ela não quer)
e (3) o apoio da Elsevier a uma lei do Congresso americano que proíbe o
governo de exigir que pesquisadores que recebem verbas públicas sejam
obrigados a dispor seu artigo em acesso livre.
O
mercado de publicações científicas, com valor estimado em US$ 7
bilhões anuais apenas para pesquisa em ciência, tecnologia e medicina
no idioma inglês, compõe-se de três economias de publicação
relativamente distintas: revistas independentes, editoras de sociedades acadêmicas e editoras comerciais
– segmentos que publicam revistas de qualidade variável em praticamente
todos os campos do saber, diferindo entre si na estrutura dos custos
historicamente associados às suas atividades de publicação.
Desta
forma, o preço cobrado por uma revista está mais associado ao segmento
que o publica. Com base nos custos por página de uma publicação
científica, calculados de acordo com taxas de assinatura pagas por
bibliotecas, as editoras comerciais cobram de três a nove vezes mais do
que sociedades acadêmicas em seis disciplinas que abrangem da ecologia à
física. Em relação à qualidade, medida pela métrica citação, a revista
pode custar dez vezes mais com editoras comerciais.
A chave desse imbróglio passa também pelos direitos autorais. Na
maioria dos países, inclusive o Brasil, ao submeterem artigos
científicos a uma revista que escolheu, os autores cedem os direitos de
reprodução e distribuição ao editor ou editora por escrito ou em
concordância tácita a uma eventual estipulação feita pela revista em
sua página de “instruções aos autores”. Preocupado em publicar, o autor
não titubeia e concorda, pois ele busca prestígio, reconhecimento e
prioridade, e não lucro. O movimento pelo acesso livre à informação
científica propugna, em relação ao direito autoral, que a questão do copyright
restrinja-se tão somente ao controle do autor sobre a integridade de
sua obra e o direito de ser adequadamente reconhecido e citado. Vale
dizer que, retirando a figura da editora comercial como detentora dos
direitos econômicos do artigo científico e reconhecendo-se o autor como
o detentor desses direitos, conforme preconizado na Declaração de
Budapeste, o movimento pelo acesso livre fere interesses altíssimos de
editoras comerciais, que também estão em busca de novos modelos de
gestão sustentáveis para não perderem o bonde da história.
No
Brasil, a questão se complica ainda mais porque o Estado é o principal
financiador da pesquisa científica, fato que por si só justifica a
ampla e irrestrita publicação do resultado dessas pesquisas em meios
que favoreçam o acesso à informação científica sem barreiras, por se
tratar de um bem público. A publicação desses resultados de pesquisa em
meios de acesso livre é o retorno à sociedade do financiamento que ela
propiciou àquela investigação.
Conhecimento científico no Brasil
O Brasil se ressente de políticas públicas efetivas para incentivar o
acesso ao conhecimento. Em relatório publicado em 2010, resultado de
pesquisa realizada entre 2007 e 2010, o Grupo de Pesquisa em Políticas
Públicas para o Acesso à Informação (Gropai), da Universidade de São
Paulo (USP), estudou o financiamento público na produção de artigos
científicos, investigação que se insere numa pesquisa maior chamada
Acesso ao Conhecimento Científico no Brasil. Ao tratar do modelo
brasileiro de acesso livre, o estudo destaca o Portal SciELO, que com
um sólido padrão metodológico contribuiu para a elevação da qualidade
de periódicos brasileiros. Aponta ainda iniciativas para o acesso livre,
que considera discretas, do CNPq (Conselho Nacional de
Desenvolvimento Científico e Tecnológico), Capes (Coordenação de
Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior), Ibict (Instituto
Brasileiro de Informação em Ciência e Tecnologia) e Fapesp (Fundação de Amparo
àPesquisa do Estado de São Paulo), concluindo que há “um altíssimo
financiamento público à pesquisa científica no país”, realizada em
universidades e centros de investigação públicos, mas o Estado
brasileiro carece de políticas públicas – e de coordenação entre as
existentes – que garantam e protejam o acesso à produção científica.
Sem
deixar de frisar que as formas de bloqueio ao conhecimento devem ser
combatidas – cabe mencionar aqui o caso da proibição de reprografia
para alunos de ciências humanas, com a retirada do ar do blog Livros de Humanas
da USP, em razão de ação judicial movida pela Associação Brasileira de
Direitos Reprográficos (ABDR) –, o relatório cita ainda como
componente desse modelo brasileiro a Biblioteca Digital de Teses e
Dissertações do Ibict, o Portal de Domínio Público do Ministério da
Educação (MEC) – que não contempla revistas científicas – e Portal de Periódicos da Capes,
o qual permite o acesso de pesquisadores brasileiros às publicações
internacionais, apesar de as principais publicações desse portal
pertencerem a conglomerados editoriais (Wiley e Elsevier, por exemplo)
que “exercem poder monopólico sobre difusão de resultados – cujo
financiamento foi em sua grande maioria público”, refere o estudo no
item 5, Conclusões. O Portal de Periódicos da Capes gastou, em 2011, R$
133 milhões na aquisição de conteúdo eletrônico, proporcionando acesso
gratuito à comunidade acadêmica de 326 instituições brasileiras a 31
mil periódicos digitais e 150 mil e-books.
Garantir
acesso à informação científica, mormente a veiculada em periódicos
eletrônicos de acesso livre, deve estar, portanto, entre as principais
preocupações do Estado, pois se traduzirá em qualificação e formação do
cidadão, melhoria, em consequência, da qualidade de vida e do meio
ambiente, além de promoção do desenvolvimento econômico e social. Isto
no que diz respeito à contrapartida que o financiamento público deve
extrair para a sociedade. Há que se ressaltar ainda a multiplicação da
informação científica para os pares daqueles pesquisadores autores que
publicam nesses periódicos de acesso livre, criando a possibilidade de a
ciência dar um salto exponencial em termos de evolução, inovação,
visibilidade e disseminação.
Paulo Cezar Vieira Guanaes é editor executivo do periódico Trabalho, Educação e Saúde da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio, Fiocruz, e mestre em informação e comunicação em saúde (Icict/Fiocruz).
Maria Cristina Soares Guimarães é
professora-pesquisadora do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e
Informação em Saúde (Icict/Fiocruz) e doutora em ciência da informação
pela UFRJ.
|
quarta-feira, 13 de junho de 2012
Acesso livre: uma nova crise no horizonte?
Assinar:
Postar comentários (Atom)
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Obrigado pelo comentário!