quarta-feira, 25 de janeiro de 2012

Afinal, o que é valor histórico?!

Por Laila Maia Galvão
Durante encontro de história do direito realizado no ano passado, na Universidade Federal de Santa Catarina, o excelente pesquisador do departamento de história Paulo Pinheiro Machado fez um relato de um dos momentos mais difíceis de sua pesquisa sobre a guerra do contestado. Ele descreveu como alguns fóruns de justiça passaram a jogar no lixo, literalmente, todo os processos mais antigos das respectivas comarcas e como ele e outros colegas historiadores se atiraram nesses lixos a fim de resgatar esse material de inestimável valor histórico.
No dia 29 de dezembro de 2011 entrou em vigor a resolução 474, do STF. Os processos e documentos do STF poderão receber o selo “Tema Relevante” a partir de critérios de análise que levam em conta “relevância” e “valor histórico”. A resolução  estabelece que “o valor histórico é o atributo concedido aos processos e demais documentos que representem um acontecimento, fato ou situação relevante para a história do Tribunal e da sociedade, bem assim os de grande repercussão nos meios de comunicação”.

A resolução parece acompanhar as sugestões contidas na Recomendação 37 do CNJ, de 15 de agosto de 2011. A recomendação, que pedia aos Tribunais a observância das normas do Programa Nacional de Gestão Documental e Memória do Poder Judiciário – Proname, já havia gerado polêmica, especialmente porque determinava o armazenamento eletrônico somente do inteiro teor das sentenças, das decisões terminativas, dos acórdãos e das decisões recursais. O restante dos autos seria eliminado.

Os critérios de (i) repercussão nos meios de comunicação, (ii) acontecimento relevante para o Tribunal e  (iii) acontecimento relevante para a história da sociedade, presentes na resolução 474, podem ser bastante vagos. A resolução, então, detalha como observá-los na prática. Terão valor histórico os processos referentes aos antigos Tribunais Superiores (Tribunal da Relação, Casa da Suplicação e Supremo Tribunal de Justiça); à nomeação, posse, e atuação dos ministros do STF; a personalidades de renome nacional e internacional; a revoluções, rebeliões e demais movimentos sociais no Brasil e no exterior; problemas fronteiriços entre Estados da Federação; atos normativos do Tribunal; entre outros.
Tais categorias de processos, os quais são considerados, de acordo com a resolução, “de potencial histórico”, pretendem englobar aquilo que poderia ser de considerável “valor histórico”. O problema é que, muitas das vezes, pequenos conflitos contidos em processos de pessoas comuns podem ser tão ou mais importantes para a pesquisa histórica a respeito de uma determinada sociedade. São processos sobre violência contra mulheres, batalhas judiciais por disputas de terras, luta por moradia, etc. A história do direito do país não se esgota na sucessão de ministros do STF! Não se trata de negar a relevância de processos de maior repercussão e de políticos famosos. Trata-se apenas de não reduzir a nossa história do Brasil a isso.
A Associação Nacional de História – ANPUH  lançou nota criticando duramente a resolução: “O documento causa perplexidade aos historiadores e a todos aqueles que, minimamente, tem acompanhado o desenvolvimento da historiografia contemporânea, em especial por duas razões: por procurar estabelecer -por decreto- o que é ou não histórico e por apontar como subsídio para essa classificação critérios considerados ultrapassados há, pelo menos, um século”.
A ANPUH critica essa visão de história do século XIX que atribui importância aos grandes eventos e às grandes personalidades. Critica também que o fato de que documentos da gestão interna do STF, como planejamentos estratégicos, convênios e atos administrativos, tenham relevância por si só, num “exercício narcísico” da Justiça, “desconsiderando que neles estão contidos dados relevantes para a história da sociedade brasileira como um todo”.
Não existe um valor histórico intrínseco, na essência. A concepção de valor histórico é construída e, por isso, é mutável. O mesmo ocorre com o próprio conceito de história. A imposição do que é significativo historicamente e do que não é, sem a promoção de um diálogo aberto e transparente com a sociedade, a principal interessada na preservação desse acervo, soa como algo autoritário. Há uma clara disputa no campo da historiografia e, ao que parece, mais uma vez é o povo que figurará como coadjuvante de sua própria história.
Por fim, a ANPUH chama atenção para a forma pela qual é atribuído o valor histórico e defende que tal atribuição seja realizada por comissões multidisciplinares, “das quais participem com voz ativa historiadores com experiência na pesquisa histórica e conhecimento dos debates historiográficos contemporâneos”. Isso porque a resolução determina que a atribuição do valor histórico caberá ao relator do processo ou ao presidente do STF, quando se tratar de processos em trâmite, ao diretor-geral da Secretaria, nos casos de processo administrativo, e ao presidente da Comissão Permanente de Avaliação de Documentos (CPAD), para processo arquivado e encaminhado à deliberação da Comissão.
De fato, o trâmite para decidir qual processo possui valor histórico é bastante restrito ao Judiciário. A implementação de tais comissões multidisciplinares, ao direcionarem olhares distintos para os documentos, tornariam o procedimento mais aberto e mais plural. No entanto, é preciso ir além. Por que não questionar quais são as prioridades dos gastos no Judiciário? Por que não realizar um investimento para que esses arquivos, que contam um pouco da história do país, sejam microfilmados ou preservados digitalmente? Definir, de forma mais democrática, os gastos do Judiciário seria uma boa medida após um ano repleto de denúncias relativas à falta de transparência desse poder.

Fonte: http://brasiledesenvolvimento.wordpress.com/2012/01/21/afinal-o-que-e-valor-historico

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