Comércio
de escravos, concessão de alforria e veneno em páginas de livros de
cartório. Esses são os primeiros registros do final do século 19 que a
Comissão Permanente de Avaliação de Documentos (CPAD) do Tribunal de
Justiça do Amazonas (TJ-AM) começa a revelar sobre a vida no interior a
partir da recuperação de documentos históricos que estavam literalmente
entregues às traças nas comarcas dos rincões do Estado.
A
restauração das primeiras 243 páginas dos registros de bens e imóveis
do Município de Humaitá (a 590 quilômetros a sudoeste de Manaus) mostra
detalhes dos costumes da época e das relações sociais no interior. Os
documentos abrem uma janela para que a história do Amazonas, a partir
dos registros do Judiciário, possa ser estudada e exposta à sociedade.
O
gerente do CPAD, Manoel Pedro Neto, afirmou que o TJ-AM já havia se
interessado pela restauração de documentos históricos após o Conselho
Nacional de Justiça (CNJ) e o Incra publicarem portaria recomendando a
recuperação dos registros da Amazônia Legal. Em 2010, durante uma
correição na comarca de Humaitá, que teve como foco a fiscalização de
processos, o escrivão da cidade Hildeberto Macedo apresentou à equipe um
livro com páginas amareladas e em franca deterioração.
Hildeberto
se mostrou preocupado com a preservação do documento que havia sido
usado na cidade há 130 anos, em 1880. As páginas do livro ainda tinham
valor jurídico, especialmente os registros que se referiam aos imóveis.
Os
técnicos do TJ-AM, ao entrarem em contato com o material, tinham
dificuldade para ler os registros porque a escrita e a gramática do
final do século 19 era bem diferente da adotada hoje pela Língua
Portuguesa. Mas, Hildeberto, de tanto consultar aquelas páginas,
decifrava com facilidade as escrituras
O
gerente do CPDA disse que, ao receber o livro, o Arquivo do TJ-AM
entrou em contato com o Arquivo Nacional (AN) para articular a
recuperação do documento. Em 2011, dois livros de registros de Humaitá
foram enviados ao AN e seis meses depois voltaram completamente
restaurados com suas respectivas microfilmagens e digitalizações. O
original ficou no Arquivo do TJ-AM e raramente é manuseado para que seja
conservado em bom estado. As cópias digitalizadas estão disponíveis na
comarca de Humaitá e no TJ-AM.
Veneno
O manuseio do livro de registro de Humaitá foi delicado porque as páginas estavam, além de deterioradas pelo tempo, envenenadas.
O manuseio do livro de registro de Humaitá foi delicado porque as páginas estavam, além de deterioradas pelo tempo, envenenadas.
De
acordo com o gerente do CPAD, Manoel Pedro Neto, o escrivão Hildeberto
ao entregar os livros antigos avisou que um escrivão antes dele, no afã
de livrar o documento das traças, passou veneno em todas as páginas.
Os
servidores do TJ-AM manuseavam os livros usando luvas, óculos e máscara
para evitar o contato com o material tóxico. “Me lembrava as cenas
daquele filme ‘O nome da Rosa’ que os padres passavam veneno para
preservar os livros e as pessoas morriam envenenadas”, observou Pedro
Neto.
No Arquivo Nacional, Pedro Neto
repetiu a preocupação de Hildeberto com as páginas envenenadas e o
livro antes de ser restaurado passou por criteriosa higienização.
Escravos
Os dois primeiros registros do livro de bens de 1980 de Humaitá são referentes a escravos. No primeiro, em 27 de fevereiro de 1880, Francisco Botelho concedeu liberdade a “um escravo de nome Faustino”.
Os dois primeiros registros do livro de bens de 1980 de Humaitá são referentes a escravos. No primeiro, em 27 de fevereiro de 1880, Francisco Botelho concedeu liberdade a “um escravo de nome Faustino”.
Embora
não se saiba quem foi Francisco Botelho, sabe-se que a família do
governador Álvaro Botelho (década de 30 do século 20) tem raízes em
Humaitá.
O segundo registro trata de
um negócio menos nobre, porém comum na época: a venda de uma escrava de
19 anos. A negociação entre as senhoras Soares Serfaty e Antonia Jezus
descrevia Cândida, assim: “preta solteira, filiação desconhecida, da
Província do Maranhão”.
Entre o
material restaurado, há ainda registro de um escrivão chamado Francisco
Plínio Coelho, que pode ser o pai de Plínio Ramos Coelho, que foi
governador do Amazonas entre 1955 e 1959.